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A Chacina da Candelária, 25 anos depois

Retratos da Intervenção - Chacina da Candelária - Foto 1.jpg

O que aconteceu?

Era pouco antes da meia noite de uma sexta-feira, quando o telefone tocou na casa da artista plástica e educadora Ivone Bezerra. Em entrevistas, Ivone relatou que pressentiu a tragédia. Horas antes ela havia dado alguns cartões de telefone para dois meninos que dormiam nos arredores da Candelária.

No dia 22 de julho, à tarde, o policial militar Marcus Vinicius Emannuel Borges Vargas trabalhava no cruzamento das Avenidas Rio Branco e Presidente Vargas, no coração do Centro do Rio de Janeiro, sem saber que aquele dia mudaria para sempre seu destino e a história da cidade.

Ele prendeu os jovens Nilton e Ruço, de 19 anos, que haviam comprado cola de sapateiro e vendiam para os meninos que faziam do Largo da Candelária seus lares.  Mas a aquisição de cola não constituía crime e rapidamente os dois foram liberados pela polícia. Ambos voltaram para a Candelária e, ao encontrarem o policial, foram irônicos.

O PM Marcus Vinicius reagiu e foi apedrejado pelos meninos. O vidro da viatura policial foi quebrado e um estilhaço machucou seu rosto. Ele foi embora prometendo vingança.

Foi esse relato, feito pelos meninos à Ivone Bezerra, que a fez distribuir os cartões telefônicos e a pressentir a tragédia quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, um menino gritava: “Tia, tão matando a gente ...”

O PM Marcus Vinicius ao chegar em casa, após o desentendimento com os meninos, relatou o sucedido ao irmão, também policial militar, e ao amigo Maurício da Conceição, ex-PM, conhecido como Sexta-feira 13. Sexta-feira era pretensamente chefe de um grupo de extermínio. Com a liderança de Sexta-feira, foi formado um grupo para o “ajuste de contas”.

O grupo chegou a Igreja, onde cerca de 50 meninos e meninas dormiam, chamando por Ruço, que havia protagonizado o conflito com o PM Marcus Vinicius. Marco Antônio Alves da Silva, o Ruço, era reconhecido como líder dos meninos e meninas que viviam nos arredores da Candelária. Ao não obterem resposta, abriram fogo contra o grupo.

Morreram:

- Paulo Roberto de Oliveira, 11 anos

- Anderson de Oliveira Pereira, 13 anos

- Marcelo Cândido de Jesus, 14 anos

- Valdevino Miguel de Almeida, 14 anos

- Gambazinho, 17 anos

- Leandro Santos da Conceição, 17 anos

- Paulo José da Silva, 18 anos

- Marco Antônio Alves da Silva, Ruço, 19 anos

 

Foram feridos e sobreviveram:

- Sandro Barbosa do Nascimento. Sete anos depois, Sandro protagonizou outra tragédia. Sequestrou um ônibus e, com a chegada da polícia, tomou como refém a professora Geisa e a usou como escudo. Geisa foi morta por um tiro disparado por um policial que tentava acertar Sandro. Ele morreu no carro de polícia asfixiado pelos policiais.

- Elizabeth Cristina de Oliveira Maia.  Conhecida com Beth Gorda, foi assassinada em setembro de 2000 ao sair de casa, numa favela da Zona Norte do Rio.

- Thiago Veríssimo, o Thiaguinho. Morreu atingido por uma bala perdida na favela da Maré em 2013

Gina. Tinha 8 anos no dia da tragédia. Morreu em 2014 após passar um período presa em um manicômio judiciário.

- Wagner Santos foi atingido por quatro tiros na Chacina e foi a principal testemunha de acusação. Meses depois, foi vítima de outro atentado, cometido por um dos integrantes da chacina. Após o segundo atentado, foi morar na Suíça onde vive até hoje.

 Retrato da Intervenção - Chacina da Candelária - foto 2.jpg Memorial da Chacina da candelária. Foto de Naira Araújo

 

As repercussões e punições

Alguns veículos de comunicação disponibilizaram telefones para denúncias e, na primeira hora de funcionamento, 25 pessoas ligaram. Todas as ligações apoiaram a ação dos polícias/carrascos. Frases como “Deviam ter matado todos”; “Ainda foi pouco. Deviam ter arrancado a cabeça deles” foram gravadas.

Quatro pessoas foram julgadas pela chacina. Dois foram condenados. Um deles foi libertado após receber um indulto em 2010. O outro está foragido após não se apresentar ao ter o indulto revogado. Um morreu durante as investigações. Um está em liberdade condicional. Um suposto participante, reconhecido por um dos sobreviventes, não foi acusado. Ninguém está preso atualmente.

Percebe-se a impossibilidade, na época, de se ver o menino que vivia na rua, como uma criança ou a adolescente. Ele era visto como “menor”. Foram mortas crianças, adolescentes e jovens que viviam à margem de tudo que a sociedade imaginava constituir a infância. Por isso, eram nomeadas “de rua”. Como se até o traço humano mais básico, o nascimento, fosse subtraído. Não tinham nomes, família, humanidade. Nasciam e morriam das e nas ruas.

 

O sistema de atendimento à crianças e adolescentes em 1993

Em 1993, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ainda engatinhava.  Promulgado em 1990, o ECA lançava o desafio da promoção e garantia de direitos, respeitando a integralidade da proteção, a singularidade dos casos, o direito à convivência comunitária e familiar.

Na prática, o ECA condenava o modelo de atendimento das grandes instituições, onde a padronização de ofertas e métodos condenavam os “menores carentes” a existências apartadas da sociedade em geral. Anunciava-se a liberdade e a construção de autonomia como parâmetros fundamentais do trabalho.

Porém o reordenamento dos serviços era praticamente inexistente na cidade do Rio de Janeiro. Em 1993, a Prefeitura do Rio de janeiro (PCRJ) possuía apenas um abrigo.

Após a chacina, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente acionou o Ministério Público para que este abrisse uma ação contra os governos estadual e municipal para obrigá-los a criar políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes em situação de alta vulnerabilidade social.

A PCRJ iniciou a construção do sistema de atendimento a meninos e meninas em situação de rua, incluindo unidades de acolhimento, serviços de abordagem nas ruas e atendimento especializado às famílias.

Reconhece-se que a Chacina da Candelária foi responsabilidade, não apenas dos policias que fuzilaram os meninos e meninas que dormiam sob as marquises da cidade, mas da ausência dos espaços de proteção e atenção. 

Entrevistas

Entrevista com Maria, de 54 anos, educadora de rua

Maria, o que fazia um educador de rua?

Era como chamávamos os profissionais que atuavam nas ruas com os meninos e meninas que trabalhavam e moravam nas ruas. No início da década de 90, eram pessoas ligadas a ONGs. A prefeitura não tinha esse serviço... Nós acompanhávamos esses meninos na rua. Levávamos ao médico quando adoeciam, dávamos comida, fazíamos atividades pedagógicas... tudo na rua mesmo.

Você já trabalhava como educadora de rua em 1993, quando aconteceu a chacina da Candelária?

 Sim. Eu trabalhava para a Pastoral do Menor. Quando soubemos da chacina, nos juntamos e levamos os meninos que sobreviveram para um prédio do Governo do Estado que estava vazio. Nos organizamos em plantões para ficar lá com os meninos dia e noite. Foi uma loucura porque não havia estrutura nenhuma. Tivemos que correr atrás para conseguir comida, cobertor... tudo.

Mas foi o jeito que tivemos para proteger os sobreviventes. Aquele momento foi muito importante para começarmos a perceber que tínhamos que constituir uma rede. Que o trabalho isolado podia ser importante, mas não era suficiente para proteger os meninos. Depois, esse prédio virou o Abrigo Ayrton Senna”

 O que mais te marcou nesse período?

Já convivia com histórias de violência. A maior parte dos meninos que morava na rua vinha de histórias de muita violência. A rua era uma alternativa de fugirem dessa violência. De serem vistos. Mas com a chacina vimos os meninos perguntarem: Tia, por que fizeram isso? E eu não sabia responder... Eu só abraçava os meninos bem apertados tentando dar meu carinho como resposta...

 

Entrevista com Paulo, de 47 anos, policial militar da cidade do Rio de Janeiro

Paulo, você já ouviu falar da chacina da candelária?

Já. Foi quando mataram meninos de rua lá na Candelária.

O que você acha que aconteceu?

Acho que foi uma covardia. Policial deve proteger e não matar. Acho que foi muito errado. Mas também acho errado essas crianças na rua. Criança tem que estar na escola e na família. Se não tem família, tem que estar no abrigo. Se cometeu crime, tem que estar no Padre Severino, antiga unidade de internação para adolescentes que cometem ato infracional.

A atuação da polícia com os meninos que vivem na rua mudou desde a chacina?

Muito. Acho uma injustiça com a instituição polícia dizer que foi a polícia que matou. Foram bandidos que estavam na polícia. A polícia como um todo não pode levar a culpa pelo que aconteceu. Assim como teve esses policiais que mataram, teve tantos outros, muitos mais, que levaram meninos para abrigos, hospitais... Que os defenderam de covardias. Da mesma forma como houve policiais que tombaram assassinados por menores. Para a polícia melhorar sua atuação, todo mundo tem que fazer sua parte. Os abrigos devem ser melhores. As famílias devem ser apoiadas para cuidar melhor dos seus filhos. Se cada um fizer sua parte, a atuação da polícia sem dúvida pode ser cada vez melhor.