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Chacina de Vigário Geral

Hoje, 29 de agosto de 2018, completam-se 25 anos de um dos piores episódios de violência na cidade do Rio de Janeiro – a Chacina de Vigário Geral.

Apenas um mês após a morte de oito crianças na frente da Igreja da Candelária, no centro da cidade, 21 pessoas foram executadas naquele subúrbio carioca. As imagens dos meninos mortos e dos 21 caixões no chão da favela chocou o mundo, constituindo marcos horrendos na história da violência no Rio de Janeiro.

No momento de reabertura democrática, os assassinatos, efetuados em grande parte por policiais militares e/ou agentes de segurança do Estado, tomam os jornais e as demais mídias.

As duas chacinas trazem à tona, na análise das motivações e vítimas, formas de agrupamento e sobrevivência de grupos “marginais”: foram mortos meninos de rua e favelados.

1. O que aconteceu na noite de 29 de agosto de 1993

Na noite de 29 de agosto de 1993 um grupo de cerca de 50 homens encapuzados e fortemente armados atravessou a passarela sobre os trilhos de trem que liga o “asfalto” à favela, invadiu o Parque Proletário de Vigário Geral e se espalhou pela comunidade.

Na Praça Córsega, parte do grupo metralhou todos os trailers de ambulantes, deixando dois mortos. Um deles, um jovem de 17 anos.

Os encapuzados invadiram a casa de uma família evangélica e mataram oito pessoas – o casal de donos da casa, seus cinco filhos e a nora.

Uma bomba foi atirada contra o Bar do Caroço, do aposentado Joacir Medeiros, 69 anos. Ali, mais oito pessoas morreram. Outras pessoas foram mortas quando, a caminho de casa, cruzaram inadvertidamente com os criminosos.

Os executores aterrorizaram a comunidade por mais de uma hora, e quando saíram deixaram 21 mortos. Trabalhadores, donas de casa e estudantes.

Núbia dos Santos, sobrevivente da família chacinada, contou ao site UOL, em 2013, o que ouviu naquela noite, enquanto se escondia sob os lençóis da cama: “Lembro-me dele [policial] falando para o meu tio, que foi o último a morrer. O meu tio falou: 'Não mata não. Eu sou trabalhador'. O policial perguntou onde estava a documentação dele, já que ele era trabalhador. Ele foi e pegou os documentos. 'Está aqui a minha carteira de identidade e a minha carteira de trabalho. Eu sou trabalhador', disse o meu tio. Depois disso eu não escutei mais nada. Apenas os tiros”.

O Corpo de Bombeiros levou 12 horas para retirar os corpos. A cena dos 21 corpos, lado a lado, na entrada da favela, chocou a cidade do Rio de Janeiro e o mundo.

A Anistia Internacional e outras entidades de defesa dos direitos humanos cobravam providências.

Ainda traumatizada pela chacina da Candelária, onde morreram oito meninos que viviam nas ruas, o Rio de Janeiro revive o horror de uma violência sem limites, com a mortes em Vigário Geral. Mais uma cicatriz horrenda na face da Cidade Maravilhosa.

 Lista mortos Vigário Geral

2. Os homens que aterrorizaram Vigário Geral

Logo no início das investigações, as primeiras pistas já apontavam para policiais militares como executores do crime.  

O Secretário de Justiça e Polícia Civil, Nilo Batista, logo no dia seguinte já afirmava que os executores seriam membros de um grupo conhecido como “Cavalos Corredores”, formado por policiais do 9º Batalhão da Polícia Militar, da região de Rocha Miranda.

O motivo da chacina teria sido vingar a morte de quatro policiais militares assassinados, no dia anterior, na Praça do Catolé, por integrantes do bando de Flávio Negão, chefe do tráfico na favela.

Nenhuma das pessoas mortas naquela noite em Vigário Geral era ligada ao tráfico de drogas.

O então governador do Estado do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, exonerou o comandante do 9º Batalhão da PM, afirmando estar “mais do que convicto” sobre a sua responsabilidade nas ações dos subordinados.

Um mês depois, o governador Leonel Brizola recebia um relatório, elaborado pelo Ministério Público e pela área de Inteligência da Polícia Militar, confirmando a existência do grupo “Cavalos Corredores”, responsável por diversos crimes.

Vinte anos depois, dos 52 acusados pelo crime, sete foram condenados e, desse grupo, três foram absolvidos posteriormente, em outro julgamento. Um quarto PM foi morto em 2007, quando estava foragido da Justiça. Sobraram três, mas um teve a pena extinta em 2012, outro está em regime condicional e o único preso, Sirlei Alves Teixeira, permanece atrás das grades por causa de outros crimes.

 

3. A favela de Vigário Geral

O bairro de Vigário Geral começou a se formar na década de 30, com o primeiro loteamento feito pela Companhia Territorial do Rio de Janeiro.

Mais tarde, em 1966 e 1970, foram inaugurados o Conjunto Habitacional Padre José de Anchieta e o Parque Proletário de Vigário Geral, o que expandiu a ocupação da área.

A favela, onde vive a população mais pobre, se estendeu às margens da linha férrea, como Parque Proletário Vigário Geral. É uma favela plana, recortada por ruas estreitas e limitada pela linha do trem e por um pequeno afluente do Rio Pavuna.

Na época da chacina, 30 mil pessoas viviam em Vigário Geral.

A luz elétrica só foi implantada em 1984, e até as obras realizadas a partir de 1994 pelo Programa Favela-Bairro, da Prefeitura do Rio de Janeiro, os moradores não tinham saneamento básico, asfaltamento, calçadas, drenagem de água.

Além das condições precárias de moradia, os moradores ainda conviviam com o problema da mobilidade. A entrada na comunidade é feita basicamente pela passarela construída sobre a linha do trem, junto à rua Bulhões Marcial, por onde entraram os “Cavalos Corredores”.

Para complicar bastante a vida dos moradores de Vigário Geral, o outro acesso à favela, passa por Parada de Lucas, a comunidade vizinha. No entanto, Parada de Lucas e Vigário Geral foram inimigos durante muitos anos, vivendo isolados, sem que moradores pudessem transitar nas ruas da comunidade vizinha, sob risco de morte.

Moradores atribuíam a rivalidade à uma partida de futebol, que teria acontecido na década de 80. Depois de um desentendimento, a discussão acabou em confronto armado, que teria evoluído para um antagonismo radical. Durante anos, moradores de uma comunidade não podiam trafegar pelas ruas da outra, apesar da proximidade.

 

4. O que aconteceu em Vigário Geral depois da Chacina

O jornalista Zuenir Ventura frequentou por nove meses a favela de Vigário Geral depois da chacina. A favela era considerada uma das mais violentas da cidade e Zuenir se propôs a conhecer os moradores e seu cotidiano.

A experiência resultou no livro que cunhou a expressão “cidade partida”, registrando a sensação de duas cidades distintas convivendo lado a lado no Rio de Janeiro. Uma, sofisticada e conhecida mundialmente pela beleza. Outra, com culturas e personagens próprios, onde “se anda sempre de metralhadora a tiracolo e a cocaína é vendida em praça pública”.

Mas, como apontava Zuenir Ventura no seu livro, após a tragédia, era preciso reagir. E a partir da comoção da chacina, surgem movimentos, organizações não-governamentais e personagens investidos de propostas e ações de reação.

 Cartaz Vigário 

Foto de Marília Rocha do material de divulgação da Associação dos Familiares de Vigário Geral.

Movimentos sociais de grande escala, como a Campanha contra a Fome e a campanha pelo desarmamento da organização Viva Rio lideram ações de mobilização na cidade, que são impulsionadas pelas chacinas e pela escalada da violência em geral.

Em novembro de 1993, foi lançada a campanha “Viva Rio – vamos começar de novo”, com uma série de ações culturais contra a violência.

No dia 17 de dezembro, a cidade se mobilizou, parando todas as atividades por dois minutos, e realizando um ato coletivo na Lagoa Rodrigues de Freitas para protestar contra a violência e propagar mensagens de paz.

Sob o nome de “Reage, Rio - Um milhão nas ruas pela paz” uma passeata, sob a coordenação do Viva Rio, no dia 28 de novembro de 1995, mobilizou milhares de pessoas numa grande passeata contra a violência, com saída da Candelária em direção à Cinelândia, terminando com um abraço simbólico ao Rio

Na comissão de frente, mães e crianças de favelas do Rio de Janeiro, em carrinhos de bebê, exibiam faixa que dizia: "Queremos brincar em paz".

Também se percebe um crescimento de projetos sociais nos bairros pobres, por ações governamentais e não governamentais, abrindo perspectivas de integração.

Uma das primeiras iniciativas da sociedade civil foi a criação da Casa da Paz em 1994, uma organização não-governamental.  A sede do projeto foi a casa onde morreram oito pessoas da mesma família.

Após um ano de trabalho na ONG, seus integrantes abandonaram Vigário Geral em função de ameaças e a Casa da Paz foi assumida pela ONG Onda Azul.

O Instituto Musiva foi criado a partir de processos artísticos realizados por moradores com cápsulas das armas disparadas na noite da chacina e também recolhidas nas ruas da favela em outras situações de violência. Foram recolhidos cerca de 12 mil cartuchos. O Instituto Musiva promoveu aulas de arte e mutirões artísticos, que incluíram mobilização de sinalização, numeração das casas e recuperação de fachadas.

Em 1993, um mês após a chacina, a ONG Afroreggae inicia ações de inclusão e justiça social por meio da arte, da cultura afro-brasileira e da educação.  A partir da experiência em Vigário Geral as atividades foram expandidas para as comunidades de Parada de Lucas, Cantagalo, Alemão, Complexo da Penha e Nova Iguaçu.

Em janeiro de 1995, a Instituição Internacional Médicos Sem Fronteiras desenvolveu uma pesquisa de campo, onde foram avaliadas as condições de saúde e psicossociais da comunidade, e instalou um posto de saúde no local, realizando a gestão com a comunidade.

O trabalho foi desenvolvido de 1995 a 1998, quando a gestão passou para a ONG Mogec (Movimento Organizado de Gestão Comunitária), que deu continuidade ao trabalho.

 

5 – A reação governamental

Também em 1995, a Prefeitura do Rio promoveu importantes projetos integradores, como o Favela–Bairro. O programa de urbanização era gerido pela Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação, com o objetivo de implantar infraestrutura urbanaserviçosequipamentos públicos e políticas sociais em comunidades.

 As ruas de terra batida foram substituídas pelo asfalto e o saneamento básico e a iluminação pública foram modernizados e expandidos na favela.  A creche Coração de Gênesi, fechada até 1993, foi reaberta e outra creche da prefeitura foi aberta.

 Vigário Geral

 

Entrevistas

Entrevista 1 – Moradora da favela de Vigário Geral

Você já morava em Vigário na época da chacina. Você estava lá naquela noite?

Eu tinha 10 anos. E morava na mesma rua que moro hoje. E estava em casa sim. Eu, minha mãe e meus irmãos. E morador de Vigário não esquece nunca daquilo. Nunca.

Você ouviram os tiros?

A comunidade toda ouviu! Não tinha como não ouvir. Os tiros e os gritos. Foi uma coisa do inferno mesmo. E o medo que a gente sentiu, eu não sei nem te dizer como foi. Uma coisa terrível. A gente mora na rua do Seu Gilberto, daquela família que morreu todinha. Só ficou uma menina.

E como foi isso pra vocês?

É o que eu disse. Um inferno. Eu fui olhar os corpos que colocaram todos juntos, lá na frente. Minha mãe não queria deixar a gente sair pra ver, mas a favela toda foi pra lá... E isso me marcou demais. Eu fiquei dias sem conseguir dormir direito. Dormia e acordava chorando, gritando... Minha mãe teve que me mandar para a casa da minha avó, em Caxias, pra eu melhorar.

Você ficou traumatizada, não é?

Eu acho que a comunidade toda ficou assim, doente daquilo. Só depois de muitos anos é que a gente conseguiu esquecer um pouco o medo, a tristeza daquela matança.

Minha mãe, coitada, ficou doente dos nervos, só dormia a base de remédio. Ficou com pressão alta, vivia assustada, tinha medo até de a gente ir pra escola.

É uma coisa que parece que gruda na gente, sabe? E pior é saber que aqueles policias tão tudo por aí, soltos. Alguns já morreram. Eu rezo mesmo para que eles já tenham morrido tudo. Deus me livre!

 

Entrevista 2 – Moradora de Vigário, 50 anos, auxiliar de educação de uma creche em Vigário Geral

Você morava em Vigário Geral na época da chacina?

Sim. Eu nasci em Vigário Geral. Eu tinha 25 anos.

Como você soube da chacina?

Soube de manhã cedo. Durante a madrugada escutamos muitos tiros, mas não sabíamos o que estava acontecendo... Nessa hora, você fecha tudo e fica bem quieto esperando passar...Ninguém dava bobeira de noite/madrugada. De manhã, contaram o que aconteceu. Eu conhecia o Cleber... Era amigo meu. Não tinha intimidade mas conhecia o Seu Geraldo...

Como você reagiu?

Chorei muito... Fiquei com muita revolta e medo. As pessoas que foram assassinadas nunca tinham feito mal. A partir dali sabia que tudo podia acontecer mesmo que você fosse trabalhador.  Eu queria ir embora de lá. Mas não podíamos abandonar nossa casa. Foram dias de terror onde não sabíamos o que ia acontecer Só melhorava um pouco quando fazíamos a contagem e todos estavam em casa

Como ficou a relação com a polícia?

Já era tensa e continua assim. O policial entra na favela pisando forte e botando o pé na porta. Ele trata geral como bandido. Nos momentos mais tensos de briga de facção a chegada da polícia só apavorava mais. Sabíamos que os tiros iam aumentar e ficávamos com medo de alguém da família ou amigo ser esculachado ou mesmo morto...”

Vigário Geral melhorou?

Ainda sofremos com as enchentes em tempos de chuva, mas não se compara aquela época. Agora temos asfalto nas ruas e esgoto. Tem muito mais comércio, internet, farmácia...

 

Entrevista 3 – Ativista social, 68 anos.

Você trabalhava em Vigário Geral na época da chacina?

Não exclusivamente. Eu era conselheira tutelar e acompanhava algumas crianças que tinham família lá, mas ficavam nas ruas da cidade.

Como você soube da chacina?

Soube no dia seguinte. Uma amiga professora ligou e me contou. Fui logo saber quem eram as crianças da família assassinada, mas eu não conhecia. Nas ruas os meninos com família de lá ficaram muito agitados, querendo notícias de todos que tinham morrido. Lembro de uma menina que me perguntou: “Tia, por que estão matando a gente?” A gente estava se recuperando da chacina da Candelária e dizia para os meninos como as ruas estavam perigosas no intuito de estimular a ida para as famílias. Aí o que dizer? Onde era seguro pare elas?

Vigário Geral melhorou?

Acho que sim. Atualmente tem muito mais serviço. Escolas, creches e postos de saúde. Mas ainda é um lugar de insegurança. Para entrar usamos o artifício de antes, perguntar na associação ou no comércio na entrada da favela se tem clima para ir. Quando o caveirão está lá não da para entrar.

Isso provoca uma imensa tristeza porque vemos uma geração criada no medo. Na convivência com a extrema violência... Ainda não temos ideia de todas as repercussões emocionais nas crianças que convivem com essa situação. Ainda sofremos com as enchentes em tempos de chuva, mas não se compara àquela época. Agora temos asfalto nas ruas e esgoto. Tem muito mais comércio, internet, farmácia...