Educação em Alvo: Os Efeitos da Violência Armada nas Salas de Aula, 2016 – 2017
Em julho de 2017 a Fundação Getúlio Vargas divulgou o estudo “Educação em Alvo: Os Efeitos da Violência Armada nas Salas de Aula, 2016 – 2017”. A pesquisa reuniu os dados acumulados entre julho de 2016 e julho de 2017. Registrou tiroteios e disparos com armas de fogo no Rio de Janeiro e buscou identificar o impacto dessa violência sobre o sistema educacional da cidade.
A pesquisa contribuiu para traçar um quadro com informações sobre os territórios mais afetados pelas ocorrências e seu impacto sobre as instituições públicas de ensino (escolas estaduais, municipais, federais e também creches), visando colaborar na proposição de políticas públicas que pudessem dirimir o impacto da violência armada sobre estudantes cariocas.
O estudo foi feito por meio de uma parceria entre a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV, DAPP, e o Aplicativo Fogo Cruzado, uma plataforma colaborativa que, por meio de diversos cruzamentos de dados, registra sistematicamente a ocorrência de tiroteios e disparos de arma de fogo na cidade.
A violência e a sala de aula
O município do Rio de Janeiro possui 1.809 instituições de ensino fundamental e médio e 461 creches e serviços de educação infantil. São 1.537 escolas e creches municipais.
Durante o primeiro semestre de 2017, 381 escolas ficaram fechadas um ou mais dias. 129.165 alunos ficaram sem aulas por períodos de um a quinze dias, o que equivale a 20,12% do total de alunos da rede municipal – 641.655.
Entre julho de 2016 e julho de 2017, a Cidade do Rio de Janeiro registrou 3.829 tiroteios.
No primeiro semestre de 2017, em 99 dos 107 dias do ano letivo, as escolas e creches foram obrigadas a fechar, devido à violência.
As áreas onde os índices de violência são maiores
O levantamento mostrou que, apesar de a violência estar disseminada por toda a cidade, existem territórios mais afetados. O estudo fez o cruzamento da concentração territorial de escolas e a incidência de tiroteios/disparos de arma de fogo, identificando as fragilidades da rede de ensino. As escolas municipais, estaduais e creches da Zona Norte da cidade sofrem mais com a violência, já que nesta região os números de ocorrências são maiores.
No cruzamento entre concentração de escolas municipais, estaduais e creches, os bairros de Costa Barros e Acari acusam os maiores riscos para estudantes e profissionais da educação. Entre 2016 e 2017, Acari registrou 72 tiroteios/disparos de arma de fogo, seguido por Costa Barros, com 54 ocorrências. A morte da estudante Maria Eduarda, 13 anos, baleada e morta dentro de seu colégio em Acari é um exemplo dessa realidade.
Quando se leva em conta o número de ocorrências, o Complexo do Alemão, com 218 registros, e o Complexo da Maré com 119, se destacam neste triste quadro. Os alunos são diretamente atingidos.
Em fevereiro de 2017, mais de 20 escolas localizadas no Complexo da Maré tiveram suas aulas interrompidas. Em março, a continuidade da violência na área levou 14 escolas a suspenderem as aulas. Mais de 10 mil alunos tiveram suas aulas paralisadas nesses dois meses.
Os efeitos sobre os estudantes
Não basta apontar a segurança física como prioridade básica. É preciso mencionar também os impactos da violência sobre o aprendizado e seus efeitos na vida dos estudantes – crianças, adolescentes e jovens.
O estudo da FGV aponta que existem registros comparativos mostrando diferença no desempenho de crianças antes e depois de vivências violentas. Depois de episódios violentos, as crianças apresentam alteração na capacidade de concentração e no controle emocional, entre outros sintomas relativos a habilidades cognitivas.
A violência tem sido uma rotina na vida das favelas cariocas, mais regra que exceção. Neste contexto é possível avaliar o enorme impacto nos níveis de aprendizagem e desenvolvimento de habilidades. Para aqueles que vivem em áreas com maiores níveis de privações sociais, a violência é mais um elemento de reforço à exclusão.
A pesquisadora da FGV, Barbara Barbosa, em entrevista à Agência Brasil, aponta a importância de garantir serviços especializados para os alunos que estão mais expostos à violência: “É preciso garantir a presença de profissionais de saúde mental especializados em atender crianças e adolescentes com comportamentos similares ao transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), capazes de lidar com os traumas advindos da exposição rotineira à violência”, ressaltou.
Entrevistas
Para retratar o impacto da violência sobre a escola a partir de experiências concretas, o Olerj entrevistou uma professora que trabalha em uma escola do Complexo do Alemão, região especialmente violenta, e a mãe de um jovem aluno da rede pública, residente na mesma localidade.
Entrevista 1 - Mãe de aluno de uma escola dentro de favela
Na sua comunidade tem muito tiroteio, não é, e com isso as escolas têm problemas também.
A gente vive lá pela misericórdia de Deus. É um inferno que só quem passa é que sabe. E fica por que não tem mesmo pra onde ir. A escola vive a mesma rotina de medo– tem tiroteio fecha a escola, todo mundo se esconde, reza. Vai fazer o quê? Tem que fechar. E tem dia que mesmo com a escola funcionando, eu não deixo meu menino ir pra aula, por que a gente vê que o clima tá ruim. Melhor ficar burro mesmo, mas vivo!
Mas ele está aprendendo? Tem assistido às aulas?
Quando tá tudo calmo ele vai pra aula. Sabe ler, faz as contas dele. Mas já repetiu nem sei quantas vezes. Falta muito, não vou mentir. E no fim, se a gente for contar direitinho, tem pouca aula mesmo. E eu vou lhe perguntar, quem é que tem sossego para aprender vivendo desse jeito, com medo, assustado? Isso é jeito de viver?
E como é que a senhora faz para compensar tantas faltas?
Para ser bem sincera, tem dia que eu tenho vontade de desistir e falar pro menino ficar em casa, já aprendeu a ler e fazer conta, tá de bom tamanho. Mas eu sei a dificuldade e a tristeza que é a gente não ter um diploma para apresentar... Agora, verdade seja dita, manter filho na escola hoje em dia tá difícil. É só dificuldade: tiroteio, professor ruim, goteira nos telhados. E um monte de aluno bandido, filho de bandido, amigo de bandido...
A senhora, então, também tem medo do que pode acontecer dentro da escola?
Tenho sim. Mas sei do esforço da diretora, dos professores. Existe agora o Conselho Tutelar, que se faltar demais acaba vindo aqui para saber o que está acontecendo. Eu quero e me esforço muito todo dia para ele não largar os estudos. Mas se você for lá olhar o prédio da escola, todo furado de bala e tiro, você vai entender como é que é a nossa situação.
Entrevista 2 – Professora de escola em área de incidência de tiroteios
A escolha onde você trabalha já foi fechada por causa da violência?
Algumas vezes, sim. Só esse ano já fechamos duas vezes. Eu diria que esse é o menor dos males da violência na comunidade. A escola tem que fechar para não colocar crianças e professores, diretoras, merendeiras, enfim, toda a escola em risco.
Por que você diz que é o “menor dos males”?
Porque a violência está fazendo uma devastação nas nossas escolas, nos professores e principalmente nas crianças. Não há nada pior do que estar dentro de uma escola sitiada, cercada por um tiroteio, com as crianças e profissionais apavorados. É uma situação que marca a sala de aula e, não tem como negar, marca a prática do professor. E, claro, marca o aprendizado.
Você já vive isso?
Vivi. Ficamos seis horas presos na escola com crianças do ensino fundamental. Em alguns momentos deitados no chão. É o fim do mundo. Eu tenho muitos anos de magistério. Nunca pensei de ver a escola pública viver uma situação desse nível. É uma lástima, uma tristeza. O professor está acuado, com medo, desmotivado.
Aumentar a segurança na escola é uma opção? Qual seria a solução para a escola nesse contexto?
Eu juro pra você que já não sei. Veja bem. A escola dentro da comunidade, no território, é um direito da criança, do adolescente, da família. Então, não dá para tirar a escola daqui. Trazer a polícia pra dentro da comunidade parece que também não resolveu nada. Taí a falência das UPPs. Penso que teríamos que reinventar a escola, refazer aquele projeto onde a escola era respeitada até pelo crime. Mas como fazer isso, eu confesso que não sei. Chegamos bem no fundo do poço.