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Ex-Presidiário, a importância da reconstrução da vida fora da prisão

A sociedade e o ex-presidiário

A sociedade, de modo geral, tende a rejeitar e excluir as pessoas que cometeram atos infracionais, mesmo que já tenham cumprido pena. Um preconceito que muitas vezes inviabiliza a reconstrução da vida fora da prisão. Muito se fala sobre os altos índices de reincidência no crime, mas não existem políticas concretas que construam caminhos para a pessoa que sai da prisão.

Diminuir o preconceito contra o ex-presidiário passa necessariamente pela implantação de programas, projetos e ações de inclusão que criem possibilidades de reconstrução da vida em sociedade. A ONU aponta para esta questão ao afirmar que o dever da sociedade não termina com a libertação do preso. Segundo orientação da ONU, deve-se dispor de serviços de organismos governamentais ou privados capazes de prestar à pessoa solta uma ajuda pós-penitenciária eficaz, que tenda a diminuir os preconceitos para com ela e permita sua readaptação à comunidade.

Mas este caminho não tem sido traçado na sociedade brasileira. Preconceito, isolamento e exclusão continuam sendo o ônus que ex-presidiários assumem, mesmo já tendo pago por seus erros e infrações.


A Fundação Santa Cabrini 

É papel da Fundação Santa Cabrini, órgão do governo do estado do Rio de Janeiro, vinculado à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, preparar o recluso para enfrentar o retorno a sociedade. 

Ela também é responsável por gerenciar o benefício do pecúlio a que todo presidiário que exerce uma atividade de trabalho tem direito, uma espécie de poupança que pode ser sacada após o cumprimento da pena. 

Mas, com as atuais condições de crise política e financeira do estado, o funcionamento da Fundação também sofreu impactos e a instituição vem encontrando muitas dificuldades para manter suas atividades. Em 2015, chegou a ser avaliada a possibilidade de sua extinção.

Nesse cenário, o sistema do pecúlio, por exemplo, que poderia ser uma ferramenta fundamental para apoiar o egresso do sistema penal, não funciona. As entrevistas realizadas neste Retrato com dois egressos demostram isso claramente. Eles relatam que não obtiveram nenhum apoio da Fundação nem receberam o pecúlio pelo tempo de trabalho durante o cumprimento da pena, o que seria um apoio para o recomeço, gera apenas mais indignação e aprofunda o fosso social para os ex-presidiários.

No início de abril, a intervenção federal na segurança pública no Rio de Janeiro exonerou o presidente da Fundação Santa Cabrini, que ocupava o cargo por indicações políticas. Agora, com uma gestão técnica e integrada à política de segurança pública, é possível reorganizar as ações para atender presidiários e ex-presidiários. 

A realidade do ex-presidiário no Rio de Janeiro

A realidade do ex-presidiário no Rio de Janeiro é muito difícil. Sem apoio governamental, marcado por toda vida pela ficha criminal e precisando enfrentar preconceitos, desconfiança da sociedade, da comunidade, dos amigos e familiares, o egresso se depara com desafios muitas vezes intransponíveis.

A grande maioria anseia por um emprego para seu sustento. Na busca por uma ocupação, acabam esbarrando em critérios definidos pelo mercado de trabalho que os eliminam de imediato. Entre esses critérios, estão nível de escolaridade, experiência e qualificação profissional. A essas exigências, soma-se o passado no crime e na prisão. Ou seja, o que o egresso do sistema prisional encontra são portas fechadas.

Frente às imensas dificuldades a que estão submetidos no contexto social, a realidade para o ex-presidiário não poderia ser outra que não a total exclusão, a negação de direitos, a falta de emprego. E tudo isso acaba por fortalecer o sentimento de rebaixamento e vergonha que pesa sobre essas pessoas. 

Sem poder contribuir para o próprio sustento, acabam se tornando “um peso” para a família. E é sob essa alegação que muitos acabam reincidindo nas práticas criminosas, na tentativa de prover recursos. 


Agentes da Liberdade, uma experiência abandonada

Em 2002, a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, por meio da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), implementou o projeto Agentes da Liberdade, que tinha o compromisso de criar oportunidades para homens e mulheres que passaram pelo sistema prisional. Foi uma proposta comprometida com a Política de Assistência Social, voltada para garantir o exercício pleno da cidadania. 

Os agentes do projeto eram homens, mulheres e travestis que tinham vivenciado a prisão e a volta para a liberdade sem apoio.  Buscava-se multiplicar ações sustentáveis e assegurar a conquista da verdadeira liberdade para os egressos do sistema penitenciário. 

A rotina operacional do projeto era executada pelos próprios ex-presidiários que, durante um período de três meses, passavam por uma capacitação profissional, ministrada pela equipe técnica da SMAS. Eles recebiam preparação para receber e acompanhar outros egressos inseridos no projeto, ansiosos pelo recomeço. 

Os resultados foram significativos na recuperação da autoestima, na melhoria das relações familiares e na (re)construção de um projeto de vida. Os agentes faziam a inclusão do ex-presidiário na rede de proteção social, a regularização da documentação e a reinserção no mercado de trabalho. O projeto teve a duração de quase seis anos, recebendo egressos de todo o estado do Rio, mas foi interrompido na mudança de gestão municipal.

Entrevistas 

O Olerj entrevistou dois ex-presidiários, uma mulher, de 40 anos de idade, e um homem, também com 40 anos.

Entrevista 1

Você ficou presa durante quanto tempo?

Três anos.

E como foi viver isso?

Foi muito difícil no início da prisão. O período da delegacia foi extremamente sofrido. Não conseguia encontrar forças para viver naquele ambiente, sujo, sombrio, lotado, condições sub-humanas. Eu chorava dia e noite. A noite era pior ainda… Dormir agarrada a uma pessoa que nunca tinha visto na vida. Um espaço que caberia 10 pessoas tinha 30. 

Quando fui para o presídio, foi bem melhor na questão do dia-a-dia. Tive a oportunidade de trabalhar, então ficou menos difícil a questão do tempo, pelo menos tinha uma ocupação para distrair a cabeça e diminuir a saudade do meu filho.

Acabei aceitando melhor a situação de estar presa, pedindo muito a Deus por mais força e proteção. Foram três anos que perdi do crescimento do meu filho, que nunca vou recuperar.


E aqui fora? É possível recomeçar fora da prisão?

Assim que saí, no primeiro momento, foi muita felicidade por estar livre e voltar ao convívio com minha família. Tive apoio da minha mãe, que esteve sempre ao meu lado e nunca me abandonou. Isso é raridade no cárcere feminino. Muitas delas são abandonadas por todos, inclusive pela família. Passei a dar mais valor a pequenas coisas do dia a dia que passavam despercebidas. 

Depois, vai caindo a ficha... Como começar de novo? Não passava em minha cabeça voltar a fazer qualquer coisa ilícita. Comecei a procurar por emprego. Aí, caí na realidade que eu era uma ex-presidiária. Estava marcada para o resto da minha vida. 

Como voltar à sociedade e fazer parte do mercado de trabalho? Passei por muitas entrevistas. Passava em algumas, mas quando descobriam o meu passado, perdia a chance. Achei, então, que era melhor falar logo no início e aí foi pior ainda, porque nem na segunda etapa eu era chamada. Lutei sozinha. 

Numa manhã, assistindo ao Jornal Bom Dia Rio, vi uma matéria sobre oportunidades para egressos. Um projeto do CNJ chamado Recomeçar de Novo. Liguei imediatamente assim que acabei de ver. Fui atendida pela assistente social que marcou a entrevista para o dia seguinte. Fui aprovada e comecei a trabalhar.

Depois de três meses trabalhando, conheci o Projeto do AfroReggae que na época era de empregabilidade. Preenchi uma ficha e dois dias depois fui chamada para uma entrevista. Resumindo, diretamente não tive ajuda, mas não fiquei parada. Tive sorte e tinha a documentação completa.

O que a Fundação Santa Cabrini fez por você quando presa e fora da prisão?         

Tenho raiva da Santa Cabrini, que nada faz para ressocialização. Ela explora a mão de obra carcerária.

O que esperava da sociedade na hora que foi liberta?                                                             

Todos têm o direito de recomeçar. A sociedade precisa diminuir o preconceito e dar uma segunda chance. O crime está com as portas abertas e nós precisamos quebrar essa reincidência.

Entrevista 2

Por quantos anos ficou preso?

Quatro anos

Lá dentro foi difícil?

Muito! Demais! Só Jesus. Levei um tiro e uma facada. 

E aqui fora, depois que você saiu da prisão?

Qualquer coisa fora dali é maravilhoso, qualquer lugar. Você cair de papelão na rua é melhor, até catar latinha na rua é melhor que estar na prisão. 

Sem apoio, é possível recomeçar fora da prisão?                                                   

Impossível, impossível, não tem como recomeçar. Tem que ter apoio da família, dos governantes, o que não acontece. Mas precisa do apoio, da família principalmente.

O que a Fundação Santa Cabrini fez por você quando estava preso e, depois, fora da prisão?     

A Santa Cabrini em si não fez nada. Eu ganhei emprego lá dentro, procurei saber como fazia para trabalhar na cadeia. Trabalhei durante quatro anos, ininterruptos, mas o que ela fez por mim, não fez nada, inclusive ainda me deve sete mil reais.

O que esperava da sociedade na hora em que foi liberto?                                                    

Da sociedade, eu nunca esperei nada. Eu não estava nem aí para sociedade, até porque eu sempre soube quem eu era, minha família sabia quem eu era e pra mim isso já bastava. Eu não tava nem aí para sociedade, o que achava, pensava, deixava de achar. Pra ser sincero, nada.