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Mulheres Chefes de Família – a história de Kátia Lúcia

Na Favela Vila Joaniza, na Ilha do Governador, vive uma família composta de uma senhora de 65 anos, outra de 39, três adolescentes, entre 12 e 17 anos e uma criança que acaba de completar um ano de vida. Com exceção do bebê, a família é composta apenas por mulheres. Kátia é a mãe das três adolescentes e Dona Graça é a mãe de Kátia. O bebê é filho de Tamires, a mais velha das filhas de Kátia. Onde estão os homens desta família? A violência levou.

As mulheres na favela

O Instituto Patrícia Galvão, em parceria com o Data Popular e o Data Favela, realizou pesquisa em 2013 onde buscou traçar um perfil das mulheres que vivem nas favelas brasileiras. O resultado da parceria foi publicado no livro "Um País Chamado Favela", de Renato Meirelles e Celso Athayde.

O estudo mostra que cerca de seis milhões de mulheres brasileiras vivem em favelas, majoritariamente concentradas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Em sua maioria essas mulheres são negras, casadas, mães, e somam um montante de renda anual de R$ 24 bilhões, além de chefiarem 40% dos lares.

“Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira”, SIS 2015), mostra que no intervalo de um ano, 1,4 milhão de mulheres passaram a exercer a função de chefe de suas famílias no País. Os dados de gênero divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, em 2014, já mostravam que as brasileiras estavam se tornando chefes de família em mais domicílios do país.

Ao analisar o tipo de composição familiar, as mulheres aparecem como chefes de 87,4% das famílias de pessoas sem cônjuge e com filhos. A proporção diminui consideravelmente quando a formação é casal com filho (22,7%) ou casal sem filho (23,8%). 

Quadro de composição famílias.JPG

Mas para as mulheres de baixa renda, maioria das mulheres chefes de família, este encargo pode ser insuportável. 53% das mulheres ouvidas pelo Instituto Patrícia Galvão, afirmaram já ter vivido o drama de não ter dinheiro para comprar alimentos.

Apesar de indicar melhoras nas condições de empregabilidade das mulheres moradoras de favela, com um crescimento da escolaridade de quase 100%, apenas 44% elas têm emprego formal.

A violência e os homens da família

A condição de vida atual de Kátia Lúcia, sua mãe e suas filhas, foi determinada em grande parte pela violência. O pai de Kátia, marido de Dona Graça está preso, em Bangu I. Trabalhador durante toda a vida, depois de demitido do emprego, após vinte anos de serviço, começou a se envolver com drogas e acabou trabalhando para o tráfico. Alcoólatra e viciado, foi preso em uma das intervenções da polícia. Por pouco não morreu na prisão, quando foi espancado por outros prisioneiros em uma briga por causa de jogo.

Continua preso e Dona Graça, também aposentada pelo INSS, depois de 35 anos trabalhando como auxiliar de serviços gerais, ainda precisa levar remédios, alimentos, produtos de higiene para o marido na prisão.  O que ficou foi a casa da família, comprada por Kátia com o dinheiro da indenização que o pai recebeu quando foi demitido.

O pai da menina mais nova conheceu Kátia no restaurante em que ela trabalhou como auxiliar de cozinha. Excelente cozinheiro, bonitão, alegre, ganhou o coração magoado de Kátia e mudou pra casa dela. O sonho de amor durou pouco. Com Kátia ainda grávida ele começou a usar drogas e fazer dívidas com o tráfico, inclusive se aproveitando do envolvimento do sogro.

Chegou a levar uma surra de pau, punição que os traficantes aplicam a moradores que dão problemas seja para os traficantes, seja para outros moradores. No caso do marido de Kátia, a surra foi um “corretivo”, um alerta. Muito machucado, o companheiro ficou dois meses em casa. Perdeu o trabalho no restaurante e Kátia também foi demitida. Logo que ficou bom, ele pegou de novo o caminho da droga. E recomeçou o ciclo.

Um mês depois já tinha sumido. Com novas dívidas e ameaçado de morte, preferiu sumir, a correr risco de vida. Deixou um bilhete dizendo que amava muito a filha, amava a mulher, mas que não podia continuar ali pra ser morto. Nunca mais mandou notícia. Isso já há dez anos. 

E finalmente a história de Tamires. Contra todas as brigas, todos os lamentos, chantagens, gritos, castigos da mãe a da avó a menina começou a namorar um dos rapazes do tráfico.  Meses depois estava grávida. O pai do pequeno Enzo morreu há quatro meses, num confronto com a polícia, a 50 metros da casa de Kátia.

Mas e o primeiro marido, pai de Tamires e Taíssa? Dizem que voltou para o Ceará. Mas Kátia acha que não, que ele simplesmente abandonou a família por outro “rabo de saia”. “Fazer o quê? A vida está aí para ser vivida”, é a lição de Kátia Lúcia.

Entrevistas

Kátia Lúcia Teixeira, 39 anos, moradora da Vila Joaniza, zona norte do Rio de Janeiro.

Kátia, o que você pensou quando se viu sozinha com os filhos e sua mãe para sustentar?

Eu nem sei se eu pensei muito não. Acho que não deu tempo. A gente tem que vestir, comer e também tem que se divertir um pouco. Se não a vida nem vale a pena. Eu não vou mentir que me deu um desespero de pensar que a gente ia viver muito apertada, devendo aí no comércio, sem poder comprar um batom, uma roupa nova para as meninas. Mas nunca tive medo de passar fome.

Mas passou fome?

Pior que passei. Teve uns meses, acho que foi em 2016, que fiquei quase sem trabalho. As minhas patroas começaram a cortar os dias da faxina. Eu tinha serviço todos os dias e fazia festa sábado e domingo. E fiquei só com uma faxina. E as festas foram diminuindo, e também tinha muita gente procurando serviço... Olha foi um pedaço difícil que eu passei. Vou te dizer que não dava pra todo mundo comer. As meninas tinham comida sim, mas eu e minha mãe, a gente ia às vezes ia dormir com fome mesmo. E no fim do ano a Tamires ainda engravidou do Enzo.

Mas e agora, vocês estão em melhor situação?

Foi melhorando, sim. Agora tenho trabalho que nem consigo dar conta. E estou abrindo um quiosque lá perto de casa. É mais um dinheiro e vou colocar as meninas para ajudar. Agora todo mundo vai ter que entrar junto. Vou te contar uma coisa. A gente teve que enfrentar isso tudo aí, né? Meu pai preso... Quando Juliano foi embora, quando mataram o Rafa, a gente ficou se sentindo um lixo, sem segurança nenhuma. Mas vou te dizer que agora a gente se sente muito mais forte. E por mim, não quero homem mais na minha vida, não. Ou vem pra ajudar, pra contribuir ou não vem não!

E a violência? Esse quadro de violência aqui na comunidade, vocês ainda têm medo?

Tem que ter medo sim, o tempo todo. Quem não tem medo morre logo, porque fica aí dando mole. Eu tenho medo à beça. Mas não tem como a gente sair daqui. E acho que nunca vai ter. Como é que a gente paga um aluguel lá fora? Nem se eu morrer de trabalhar eu vou conseguir sair. Então o negócio é ir melhorando a vida aqui, né? Meu sonho era tirar o Enzo daqui. Porque aqui é muito difícil para criar filho. Você acha que fez tudo certo, mas quando se dá conta, os filhos tão envolvidos (no tráfico). É assim ó, do dia pra noite. Mas tô falando todo dia com as meninas que agora, com o quiosque, a gente pode melhorar bem a vida. Mas tem que cair dentro, trabalhar mesmo, acreditar. Daí a gente vai. E tem que cuidar do único machinho da família! Com esse vai ser tudo diferente. Você vai ver só.