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Só um número a mais nas estatísticas?

Marcos, um jovem sem presente e sem futuro

Morador de uma pequena favela carioca, negro, 19 anos, fora da escola. Morto com um tiro no peito, em confronto com a polícia, a 100 metros da casa da sogra, onde morava com a namorada de dezesseis anos e o filho de um ano.

Marcos começou a trabalhar para o tráfico de drogas aos 14 anos e nunca se arrependeu ou questionou a sua escolha. Seu sonho era crescer, subir na hierarquia dos “donos” da favela. Algumas vezes chegou a prometer à namorada, então grávida, que largaria aquela vida. Mas todos ao seu redor sabiam que já não havia alternativa para o rapaz. Ele gostava da “vida errada”. Mas por quê?

Dinheiro não tinha. Muitas vezes não podia sequer contribuir com fraldas ou  leite em pó para o pequeno Enzo. Casa não tinha e aluguel não podia pagar para abrigar a sua família. A sogra conta que muitas vezes viu o genro chegar descalço, só de bermuda. Uma triste visão de pobreza.

Na noite em que Marcos foi atingido, a notícia que a polícia estava na favela já tinha circulado. Mas mesmo assim ele decidiu ir para a rua, porque tinha recebido ordem do chefe. Por algum motivo errou o itinerário, ou talvez alguém tenha denunciado seu paradeiro, e acabou encurralado no beco pertinho da casa da sogra, onde morava há pouco tempo.

Foi só depois de muitas brigas e discussões que Solange e o marido aceitaram a presença de Marcos em casa. A filha o deixava entrar, no meio da noite, quando todos dormiam, e também o mantinha escondido em casa, quando a polícia estava na favela. E aos poucos a família foi cedendo, o pequeno Enzo aprendia a falar papai e ali, nas tardes e noites de conversas e brincadeiras, eles formavam uma família como outra qualquer. E Marcos era apenas mais um jovem que foi pai precocemente. O menino que cresceu por ali, nas ruas da comunidade, desistiu da escola e segurou a oportunidade aparentemente mais fácil – trabalhar com o tráfico.

Quando a notícia chegou, uma infinidade de sonhos e esperanças foi destruída ali mesmo na salinha da casa. A barulheira quase diária dos tiros lá fora finalmente atingiu a família em cheio. E Enzo perdia o pai para sempre.

Jovens e negros são os que mais morrem no Brasil

O Atlas da Violência, publicado esse mês, junho de 2018, aponta as estatísticas nas quais a morte de Marcos vai se inserir. Em 2016, houve 62.833 mortes violentas no Brasil. O número não apenas denuncia uma tragédia em termos de vidas humanas perdidas para a violência. Ele traz embutido outros dados assustadores: a maioria das vítimas são homens (92%), negros (74,5%) e jovens (53% entre 15 e 29 anos).

Entre 2005 e 2015, o número de mortes violentas subiu 10,2%. Ente os jovens de 15 a 29 anos, o aumento foi de 17,2%. E quando a abordagem considera a cor da pele, é gritante a cristalização da desigualdade e da exclusão: negros e pardos (53,6% da população) correspondem a três de cada quatro pessoas assassinadas em 2016. Os que se declaram brancos (45,5% dos brasileiros) foram vítimas em 25% dos casos.

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Na favela onde Marcos morava, os confrontos continuam quase que diariamente. Depois dele, outros dois já morreram e outros foram baleados. Todos jovens e negros.  Todos fora da escola.

O que resta da família

Marcos foi socorrido e chegou vivo ao hospital. Repetia, aos prantos, que não queria morrer, mas logo percebeu que sua situação era grave e começou a deixar recados: que dissessem à namorada e ao filho que os amava muito; que dissessem a sua mãe que ele pedia seu perdão. 

Viveu toda a sua vida dentro da comunidade de onde realmente nunca saia. O perigo lá fora, no “asfalto”, era o encontro com membros de facções rivais ou com a polícia. Só saiu para morrer no hospital, porque o médico que atende os traficantes dentro da favela não conseguiria fazer nada por ele.

Faz um mês. A mãe desde então vive num mundo à parte, onde o filho ainda vai passar para almoçar e ela espera, com duas de suas camisetas lavadas e passadas em cima da cama. O irmão, que estava longe da favela, afastado do tráfico, voltou e já se envolveu de novo com as drogas e quer vingança, quer “matar alguém”, como ele mesmo diz. O resto da família, irmã e tia, já saiu da comunidade, sem querer arriscar a sorte, com medo de cair nas mãos de um dos antigos desafetos de Marcos.

A namorada não sabe que rumo tomar. Talvez vá embora com a família de Marcos. Segura o menino no colo e parece absolutamente surpresa com o que a vida trouxe para sua história, mesmo admitindo que o “mapa” da vida do namorado indicava claramente o caminho para a morte precoce e violenta.

Planeja tatuar o nome do namorado no corpo, como uma homenagem eterna. Mas tem só dezesseis anos e não sabe que a eternidade, nessa idade, é muito, muito curta.

Os jovens continuam fora da escola e dentro do tráfico

Em 2017, o Fundo das Nações Unidas pela Infância e Adolescência (Unicef) divulgou relatório que apontava 2,8 milhões de crianças e adolescentes fora da escola no Brasil. Desse total, 57%, ou 1,6 milhão, são jovens entre 15 e 17 anos.

Segundo relatório do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2016 mais de 10 mil alunos deixaram a rede escolar da cidade do Rio de Janeiro.

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Matéria publicada no jornal O Globo, no domingo, dia 17 de junho, apresentava dados que relacionavam os números da evasão escolar com o número de jovens infratores detidos. Nos cinco primeiros anos de 2018, 3.223 adolescentes foram detidos por atos infracionais. Dentre eles, 83% tinham abandonado a escola.

Entrevista

Entrevista 1 – Dona Solange, sogra de Maurício

Como sua filha está reagindo à morte do Marcos?                                                                      

Mal. Ela não tá bem não. Fica parada, olhando pro nada. Eu tô preocupada demais, porque tem o menino, meu neto.  Eu saio pra trabalhar e deixo eles em casa... Me preocupo com tudo. Mas antes era até pior. Quando ele tava lá em casa ninguém tinha paz. E o medo da polícia chegar, procurar ele lá dentro?

E você proibia, não é?

Proibia. Meu marido proibia, era uma briga danada. Mas ele era o pai do meu neto. Eu conhecia o Marcos desde pequeno. Como é que eu ia deixar ele do lado de fora, sabendo que ele podia morrer? E ele não era má pessoa. Mas escolheu a vida errada.

O que atrai os meninos para o tráfico?

É a ilusão. Acho que é a coisa de ter arma, de achar que vai chegar em algum lugar na vida. Olha, por que dinheiro não é. Marcos não tinha nada. Nem um aluguel conseguia pagar para viver com minha filha e o menino. Nem fralda, nem roupa, nem nada. Agora mesmo foi o aniversário do Enzo, ele não contribuiu com nada. Não tinha!

E ele nunca pensou em sair do tráfico?

Pensou nada. Dizia que sim, pra minha filha, no começo do namoro, há uns três anos... Mas era mentira. Ele queria era crescer lá dentro, virar gerente. Tava nisso há cinco anos.

Ele tinha medo de morrer?                                                                                                               

Ninguém acredita que vai acontecer com a gente, né? Eles agora não querem saber de nada, vão direto pra cima da polícia. A polícia não sobe mais pra prender ninguém. Sobe pra matar. E eles vão pra cima também... E nisso, eu tô vendo um monte de garoto que eu vi nascer morrer aí na rua. Essa semana foram mais dois. Só falam de Acari, Rocinha. Daqui ninguém fala. E ninguém fala também que esses meninos são filhos de alguém, pai de alguém. Tão errado, eu sei. Mais parece que o que tá morrendo é barata. Mas é gente.

Entrevista 2 – Irmã de Marcos

Você é mais velha que o Marcos?                                                                                                         

Não. Fiz 18 anos. Pareço mais velha, né? Minha avó diz que é por que eu tenho juízo. Trabalho e estudo, ainda.

Como é que está a sua família? Vocês querem ir embora daqui?

Só eu, meu marido e minha tia. Minha mãe tá sem condições. Tá perturbada. E meu padrasto também trabalha por aqui. Mas eu vou embora. Não quero isso mais pra mim, não. E tenho medo de ficar. Sem o Marcos, não sei o que vai acontecer com a gente aqui.                                                                                                                                                

Mas medo de quê?                                                                                                                              

Tem gente que vira inimigo. Tem gente que tinha inveja, tinha implicância. Mas enquanto Marco tava com os meninos, ela tinha proteção. Agora acabou. Não custa nada daqui a pouco ter moleque aí esculachando a gente. Quero ir embora, esquecer desse lugar.

Mas e o seu outro irmão? Ele voltou pra cá.

Esse é o pior! Ele saiu daqui pra não morrer. Já levou surra de pau lá na rua porque faz dívida. Não vou ficar aqui pra ver mais um morrer.  A gente já arranjou casa e tudo. Agora é fazer minha cunhada vir com a gente. Eu quero ficar com o Enzo pertinho de mim. Ele é o que ficou do meu irmão nesse mundo.            

Seu marido tem quantos anos?

Tem 20. Também trabalha de garçom e faz curso para virar cozinheiro. Nem todo mundo na família é bandido não.